Google+ SOMBRAS DA MEMÓRIA: 2010

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Se morreres amanhã








Se morreres amanhã,
haverá apenas menos um passageiro
no comboio da tarde...
Se morreres amanhã,
a ausência do compasso sonoro
dos teus passos
não será escutada...
Será apenas mais uma ausência
entre milhões de ausências habituadas...
Se morreres amanhã,
alguns, poucos, lembrar-se-ão
de ti durante um ou dois dias...
Recordarão a tua morte
para celebrar a sua vida...
Não passarás de um bom motivo
de conversa...
Os portadores da notícia da tua morte,
sentirão alguma alegria mórbida
na divulgação da notícia em primeira mão...
"Eh pá, sabes quem é que morreu...?..."
Se morreres amanhã,
serás boa pessoa nos dias seguintes,
inventarão defeitos
pouco tempo depois...
Passado um ano já te mataram
vezes sem conta...
Se morreres amanhã,
desapareces ou deixas de aparecer,
apenas...
Se morreres amanhã,
haverá um prazo legal
para participarem o teu óbito...
... apenas isso...
um prazo legal...
De ti, restará um número de processo
na reparticão de finanças...
Depois de morto,
continuarão a enviar-te 
a conta da água, da luz, do telefone...
Se morreres amanhã,
terás quatro pessoas a chorar-te...
Se morreres amanhã,
os negociantes da morte
serão os primeiros
a fazer-se anunciar
aparecerão vestidos de negro,
solicitos e ainda quentes do morto anterior...
Se morreres amanhã
a segurança social vai poupar
no que seria a tua reforma...
Se morreres amanhã,
só mesmo tu é que vais
dar por isso...
Se morreres amanhã,
morres...















Desejáste o desejo








Olháste-me dentro do olhar,
suplicáste um beijo,
ensaiaste um abraço,
lembráste um desejo,
escutáste memórias,
sentiste aquele arrepio...
dançáste e tropeçáste
na armadilha do tempo...
olháste-me dentro do olhar,
procuráste aquela expressão,
um vestígio de nós...
estendeste-me a mão
para não caíres,
aproximáste os lábios
para te despedires...
desejáste o desejo
na memória de um beijo...
esboçáste um gesto,
frágeis, as tuas pernas,
arrancaram um passo...
olháste-me dentro do olhar,
disseste-me amor e amar
conjugáste o verbo
num passado quase perfeito...
pegáste na minha mão,
entrelaçámos os dedos,
falámos dos medos...
Olháste-me dentro do olhar,
abraçámo-nos...
olháste-me dentro do olhar,
testemunháste
as lágrimas...
Olháste-me dentro do olhar,
amáste-me dentro do amar,
sentiste o compasso descendente
do pulsar...
olháste-me dentro do olhar
e partiste...
para não mais voltar...

O Velhote da cama 35









Amanhã serás o ontem esmagado,
o rasto dos teus passos serão meras sombras
no desalinho das emoções esquecidas...
Galgas os dias, afugentas as horas,
abraças os instantes em despedidas
sem corpo...
Procuras as marcas da tua presença
e encontras fantasmas em agonia...
Cansado de amanhãs nascidos mortos,
caminhas na solidão sem nome...
Hoje, mais do que ontem,
sabes que ninguém escutará
as tuas súplicas...
Vives paredes meias com a morte,
sem ninguém que testemunhe
a tua existência...
Morres em cada lágrima
o desespero do tempo...
Resistes mais um instante,
como quem ainda espera por alguém
ou por alguma coisa...
Morre dentro de ti a última memória
daquilo que sentiste vida,
morre dentro de ti
o último lugar onde acreditáste
em milagres...
Indiferente, a tarde cai,
igual à última tarde...
Sentes que a tua solidão
é o teu pior carrasco...
A noite chega, escura,
quase morte...
continuas só, absolutamente só...
Não sabes se estás louco
ou lúcido...
Esqueceste-te de ti,
do teu nome...
Sabes que ninguém se lembrará
de quem foste...
Serás apenas o velhote da cama 35,
o tal que não tem ninguém,
o tal que chora todas as noites...
serás apenas mais um sem nome
e sem história...





Memória







A manhã era um lugar de esperança,
caminhava para ti, no encanto de te ver,
vislumbrava-te na distância,
os passos e o coração aceleravam,
acontecia o beijo quente e doce,
num abraço de vidas,
num relance de eternidade...

Amar-te era a razão, a única razão,
tocar-te, sentir-te, olhar-te...
Apertávamos as mãos e a terra tremia,
ano após ano, dia após dia,
em cada instante,
Amo-te terna e eternamente...


Barão de Campos

Mulher paisagem














Docemente, os teus olhos dançavam,

flutuavam no movimento do corpo,


como canoas brancas à deriva...




Quentes, os teus lábios devoravam


a ânsia crua e incandescente dos meus...


A tarde volvia sem apego nem tormenta,


entardecendo a nudez pálida do desejo...



Barão de Campos

O teu lugar...







Lembro-me dos teus longos cabelos negros,
na força do teu olhar quente e doce,
quase a tocar o meu rosto...
Lembro-me da tua beleza,
próxima da minha loucura...
Lembro-me da forma espessa
e vermelha dos teus lábios...
Lembro-me do som melódico
da tua voz...
Lembro-me da tua pele macia,
na alegria do teu sorriso...
Lembro-me de te amar
sem que o soubesses...
Lembro-me dos teus gestos,
mesmo quando não te movias...
Queria sonhar contigo
e acreditar que não tinhas partido...
Queria ter-me despedido,
mesmo que o silêncio
fosse a palavra maior
contida num abraço
que a memória não apagaria...



Barão de Campos


No refluxo das palavras...








Não sei o que procuras quando me encontras,
nem o que sentes quando me tocas...
Não sei interpretar as palavras
que regurgitas com esforço...
Não sei se os teus olhos
conseguem ver ou ser vistos...
Não sei se os teus lábios
fervem de amor ou de ódio...
Não sei se o teu corpo
é abrigo ou clandestinidade...
Não sei se és mágoa,
dor ou apenas simulação...
Não sei se as palavras
que não pronuncias
são as únicas que dizes...
Não sei se os teus gestos
afagam mágoas
ou esmagam sonhos...
Não sei se as tuas mãos
se entrelaçam nas minhas
ou se ensaiam estrangular-me...
Não sei, se és noite,
madrugada ou manhã,
ou se és apenas a tarde
de mim já morta...
Não sei se és desejo,
prazer, amor, paixão
 ou apenas volúpia...

Sepultados vivos










Em cada canto sombrio,
inesperado, ouvem-se vozes,
conservadas pelo frio,
como apodrecidas nozes...

Ei-los! Sepultados vivos,
sem nomes nem idades...


Extraviados sem retorno,
aninham-se no ventre da noite,
viajam no corpo da madrugada e
amanhecem nos postais ilustrados
das cidades sem alma...

Cidade








Prostitutas deambulam na cidade
que ferve por entre os dentes das horas...
Desfilam numa passerele sem nome,
ensaiam gestos, movimentos...
Ondulam as ancas abertas,
exibem os seios hirtos...
Os lábios exalam um misto
de prazer e náusea...
As esquinas são abrigos armadilhados,
 gastos pela escravidão e pelo medo...
Ao longe, numa falsa timidez,
Maria, tem no olhar as primaveras
que não viveu...
Doce, quase humana,
olha a tarde em busca de um milagre...
Uma blusa transparente ondula,
a mini saia convida...
Maria, tem uma voz fraca,
doces e densos os olhos parecem húmidos...
O crepúsculo tomou conta da cidade,
as cores e as faces, são apenas silhuetas,
anónimas, sem alma...
O largo fica mais povoado,
sombras atravessando sombras...
Maria, acabou de negociar as entranhas...
Negou mais uma chance
de sentir-se amada...





Altares sem esperança
















Olhos desventrados nas colinas do medo,
lanços espezinhados pela tortura do tempo...
Dementes, os teus passos e pensamentos
difusos, confusos, ausentes, latentes...
Vultos que se movem nas esquinas,
sombras negras, rápidas e sólidas...
Desespero no olhar vazio das paisagens mortas...
Altares sem esperança, lugares estéreis,
gente gritando o último grito...
Ossadas esquecidas,
saltos altos, gravatas, poder, vaidade...
Longe, entre gemidos,
espasmos e sonhos,
a vida insiste, persiste, resiste
e perde...
Ciclo paradoxal,
consciências que se volatilizam
na eternidade...
Morte...


Barão de Campos

Promessas vadias









Últimas palavras, gestos, olhares,
traição da memória...
sedentos de ódio, rasgam o espaço,
perfuram lancinantemente a alma...
...sempre e nunca...
impossibilidades possíveis,
sofrimentos esquecidos...
eternas saudades que se esbatem
no passar dos dias...
ausência solidificada...
sombras partindo,
sons ofegantes,
distantes, quase inaudiveis...
memórias em agonia...
estranhos na estranheza
consolidada da negação...
Abraços gélidos,
lugares sem nome,
recordações assassinadas...
Promessas vadias,
derramadas pelas esquinas,
sonhos dedilhados
em acordãos falsos...
Palavras partidas,
gravadas nas lápides
quase brancas do silêncio...
Amor sangrando
no rasto de um poema
que desejou ser matéria,
forma e alma...
Frias e vazias
as mãos fecham-se,
os braços cruzam-se...
as lágrimas mortas e humilhadas
secaram a memória
dos corpos, num tempo
feito de gesso...



Barão de Campos


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